Café com poeira

Dei uma pausa!
Ah! Aquela pausa tão necessária …
Procurei a minha xícara preferida, coloquei o café fresco, aquele aroma que rapidamente aqueceu meu coração começou a alastrar-se por todo o ambiente, procurei minha poltrona e a encontrei num canto solitária, cheia de tralhas em cima, revistas enfiadas de um lado, almofadas reviradas do outro e uma blusa que já havia procurado há dias e nem me lembrava que estava ali.
Fitei-a com os olhos de poucos amores e pensei que talvez, o melhor fosse logo lavá-la.
Pronto, já chegaram os malditos intrusos! Deixa estar, que isso logo se vê, não é hora de pensamentos domésticos. Virei a poltrona para a luz do sol que agora já adentrava a janela, e a observei resmungando baixo, com ar de poucos amigos:
– Ora, ora, quem é vivo sempre aparece!
As lamúrias de uma poltrona amargurada pelo abandono do calor humano, ao qual se encontrava, (diga-se de passagem), há meses em total esquecimento. Acomodei-me confortavelmente na amiga poltrona, que aceitou meu retorno de braços abertos e observei a destreza das partículas de poeira que dançavam à minha frente, delicadamente acomodadas no feixe de luz do sol, tornando-as brilhantes numa mistura de tons vermelhos e alaranjados. Completamente hipnotizada por aqueles pequenos pontos débeis de sujidades bailantes, pensei novamente, preciso fazer uma limpeza profunda naquela poltrona! O intrometido pensamento doméstico invadiu-me a mente sem permissão e então, quase que com um sacolejar de cabeça, afastei-o rapidamente e o prendi perpetuamente condenado ao crime de invasão de privacidade, numa sala escura junto com as vassouras, cestos de roupa e louças para lavar, antes que me pudessem escapar!
Um pequeno gole naquela xícara de louça inglesa, adquirida algures numa viagem romântica com alguém a quem fiz o favor de esquecer e que aprisionei nas memórias de outra sala solitária da minha mente, condenado pelo crime de mágoas e memórias dolorosas. Degustei então, lentamente, com os olhos semicerrados, me sentindo invadir por uma onda de nostalgia e alegria, desfrutando agora de um pensamento vazio, raro e necessário. Olhei novamente a dança da poeira que brilhava agora mais nítida e resolvi abrir a porta da varanda com a esperança de que talvez, elas pudessem voar livres e ir embora para ocupar um outro lugar que não o meu.
Neste momento a brisa leve tocou delicadamente sobre minha face, e quando abro os olhos, a poeira dançante apenas mudou de música , desistiu de bailar ao som de La Luna de Debussy , para dançar Do it to It de Acraze , rodopiando em perfeita sintonia à minha frente, refleti sobre; como somos frágeis e mutáveis de acordo com a frequência externa que nos movimenta e Newton com suas leis afiadas, sentou-se ao meu lado para refletirmos amigavelmente , na máxima de que:  “Todo corpo continuará em repouso , até que alguma força lhe seja aplicada“ .
Quantas forças são aplicadas sobre nossa matéria externa e interna que nos fazem mudar drasticamente, freneticamente e diariamente a nossa rota sem que possamos controlá-la?
E resistindo a isso ou não, todavia, inexoravelmente, vivenciamos isso ao longo da jornada das nossas vidas causando sérios danos ao corpo e a alma, como doenças, ansiedades, depressões e toda sorte de dramas e dores humanas, ao qual estamos sujeitos como matéria existente e coabitante no planeta, ou, para os mais cristãos, na perfeita teia do criador.
Quantas vezes nos deparamos com mudanças radicais que exercem tamanha força no nosso corpo e que nos trazem imensos efeitos colaterais tais como, queda de imunidade, alergias, gastrites, dermatites etc.?
Como escrevi outrora num poema, que jaz perdido entre pilhas de papéis, “Quando o espírito grita, fere a casa que habita” e nem nos apercebemos do tamanho dessas forças externas que nos movimentam e mudam a inércia da nossa paz diariamente, e menos ainda, dos danos que por elas são gerados.
E quantas dessas vezes nos permitimos flutuar, entrar na inércia, meditar e controlar o máximo possível essa força externa e dramática para que pudéssemos permanecer sobre os efeitos da paz contínua? Nem que o contínuo fossem apenas cinco minutos, afim de que alguma sanidade ou alimento fosse fornecido à nossa alma , que tem de ser imensamente versátil sofrendo pressões diárias e atolados até as joelhos nessa sistemática organizacional secular , nós ainda nos sentimos alegres e competimos uns com os outros , nos vangloriando quando conseguimos chegar ao final do dia  tendo executado milhares de coisas que nos foram enfiadas goela abaixo, honrando o título de sermos super- homens e super- mulheres , ganhando imensos pontos da vida quando conseguimos alcançar o ápice da versatilidade e resolução de problemas no menor prazo possível !!
Ainda não vi prémios e congratulações para pessoas que conseguem manter-se o maior tempo possível em tranquilidade e equilíbrio, pois sinto que o mundo nos enxerga como máquinas de êxito e quantificação descartável após o uso contínuo, sem as manutenções essenciais, pois é mais barato ao sistema descartar, do que fazer as manutenções vitais à nossa sã existência, que irremediavelmente lhes serão custosas ao longo da vida.
Afinal, não somos nenhum Airbus e nascem milhares de nós todos os dias, sem valor algum, que as escolas tratam de podar e padronizar ao máximo, castrando nossos sonhos e sentimentos, com a intenção de estarmos prontos para servir ao sistema, onde somos usados em potência máxima e depois, descartados como um liquidificador barato comprado na Black Friday sem garantia.
Então, permaneço a observar o vazio, com o olhar distante, tentando entender como da contemplação da poeira cheguei à análise do sistema e a realidade do estresse mundano?
Aliás, a poeira não quer dizer muita coisa! Porém, um mestre sábio uma vez disse: “Que dela viemos e a ela retornaremos”
No final, a roda gira, gira e ao pó…
Ela há de chegar!

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