Quando a mãe cala um oceano
Eu sei que a maternidade exige um tempo de espera, para que a plantinha que cuidamos lá atrás amadureça e consiga sobreviver ao mínimo, a fim de resistir, se fortalecer e respirar por si só. Eu sei que a maternidade exige um sacrifício para além de nós mesmas, por eles e para eles e nos versos deles, sabemos de tudo isso, do quanto iremos renunciar e de que nosso coração nunca mais andará conosco, ele estará por aí pelo mundo, experimentando seus sabores, os seus dissabores e fatalmente, sentiremos doer as suas dores e nos alegraremos pelas futuras escolhas que eles farão.
Isso é, sim, ter o coração fora do peito e vê-los andando pelo mundo traz uma mistura de medo, ansiedade, preocupação e uma breve degustação da vida que viveremos em nós mesmas, a qual também já não reconhecemos. E, do mesmo modo que mandamos um filho para o mundo, mandamos também uma mãe, que nem sabia como era ter tempo novamente para ser alguma coisa, além de ser mãe. Os filhos saem da bolha e sai também a mãe.
Sabemos de tudo isso, mas e o tempo de espera, nós sabemos? Tempo pelo qual nós teremos que esperar, para não causarmos danos traumáticos antes de eles voarem seus próprios céus, nós sabemos?
Não sei se toda mãe tem esse mesmo sentimento ou a mesma ideia pronta do que seria uma família perfeita e do quanto eles precisarão para serem felizes, mas acredito que uma maternidade impecável seria a doação de nossas vidas de forma plena, até que eles completem 18 anos, ou até que nos deixem e sigam para a Universidade. Talvez esteja aí um sinal do tempo, de quando devemos parar e olhar para o que restou de nós e de nossas vidas. Até este ponto, uma mãe estará de forma totalmente imersa, para amá-los, protegê-los e ver a sua vida atrelada ao destino e às responsabilidades diárias, envolvendo os esportes, línguas, tarefas, festas escolares, etc. Viver a vida deles como sendo o motivo de nossa existência talvez seja o mínimo que se espera de uma boa mãe.
Pelo menos, os meus sonhos pessoais viajam por esses caminhos conservadores, de que a maternidade saudável só é possível numa propaganda de margarina bem aprumada, com o pai, a mãe e os filhos juntos numa fotografia de verão. Ah… isso é tão claro, tão terapêutico, como é possível uma sociedade saudável crescer sem esta moldura? Como é possível uma geração forte não ser pautada pela figura de um pai forte e uma mãe resiliente, numa casa com meias penduradas na lareira no Natal? Essa imagem, que me traz segurança e estabilidade emocional, é a mesma que me sentencia todos os dias.
E quando a mãe se descobre no meio do processo de criação? Quando a mãe se encontra no meio deste tsunami e se percebe cheia de maravilhosos sonhos e ideais, lendo o mundo em preto e branco, onde tudo vira uma linda poesia. Quando a mãe se percebe dotada de dons maravilhosos, que vão além da criação dos filhos e que praticamente tudo que lhe rodeia é um grande entrave para que o rio abundante que flui agora possa descer encosta abaixo, carregando tudo e todos em seu entorno, cheio de si, de vida, de oxigênio e de alimento para a alma em que habita e de todos que habitam ao seu redor.
Um tempo em que o silêncio de criação é extremamente necessário para que essa mãe abundante possa jorrar e se manifestar viva e Deusa de suas águas livres e enfim… possa voar sem fim, colorindo de magia as folhas brancas das bordas terrenas, que, como vozes num portal, a chamam para fluir e florir.
Precisamos exorcizar essa mulher? Apagar este fogo de vida que invade sua mente, trazendo ideias de poetizar o mundo em que habita? Como conseguir acessar o mais íntimo sentimento humano, para escrever as nuances que se observam no cotidiano, sendo uma mãe totalmente presente e presa às figuras internas e enraizadas em sua mente por gerações? Como ser a mãe que o nosso mundo interno e externo de expectativas espera de nós, se nosso coração está dançando livre num processo de criação sem freios, abundante, dilacerante e a cada término que se esvai deste maná precioso, sem que pudéssemos transformá-lo antes, em nossa arte, porque estávamos criando, maternando e cumprindo nossas obrigações terrenas, causam uma ferida sem cura em nossa alma, porque nos vemos sendo inspiradas neste processo a todo minuto pelos anjos que falam coisas em nossos ouvidos e aos quais não podemos e não conseguimos dar atenção devida, porque suas vozes são suprimidas e sucumbidas pelas vozes de nossas responsabilidades diárias, que nos forçam a fazer e ser o que a sociedade e o que nossos valores internos esperam de nós e que nos condicionam sem fim, num nó de culpas que passam a existir.
E se os anjos desistirem e pararem de falar? E se os anjos pararem de dizer o que precisamos escrever?
Até quando? Até quando vão nos impedir de viver, de bordar a máxima expressão do nosso ser, de nossos sentimentos, que ficarão em folhas guardadas numa gaveta, lidas na posteridade num domingo de verão, onde os irmãos almoçarão juntos e lembrarão… que a mamãe queria ser escritora. Pobre mamãe, eles dirão! Todavia, mamãe era uma mulher de Deus e cria que Deus era o senhor de seus sonhos e isso que importava, nada mais importava, só o que teria de recompensa no eterno, por renunciar a sua vida em prol de sua prole, é o que interessava de verdade e tinha certeza de que receberia a benção de Deus por deixar sua vida de lado, no passado, para cumprir sua obrigação de mulher virtuosa, o seu chamado!
Mas será? Será que Deus a inspirava todos os dias ou será que era o Satanás, que a inspirava todos os dias para que ela se distanciasse da família e dos filhos e atendesse ao chamado disfarçado de poesia? Não creio. Não creio que uma mulher que ora e se vê inspirada todos os dias a escrever seja capaz de ser influenciada pelo Satanás quando declarou em sua vida que Deus é o senhor de sua casa e de sua família. Não acredito que nenhuma força sobrenatural do mal seja capaz de falar o belo em seu ouvido e que só os anjos do senhor são capazes de trazer beleza e impulso de vida, neste mar da existência humana.
Acredito que seja mais um dos desafios que Deus dá às mulheres, capazes de serem designadas apenas às maiores forças da natureza, a mãe, neste caso, a mãe natureza, a mulher de infinita beleza.
Acredito que seja essa a minha arte, conseguir poetizar e colorir o mundo, conseguir silenciar a minha mente diante do caos externo em que vivo e produzir com tamanha entrega, o néctar de palavras que saem na ponta da caneta e entregar ao mundo o fruto da minha essência, como as conchas que passam por uma grande pressão de dor e ofertam ao pescador a mais bela pérola, resiliente, reluzente, imaculada e coerente. Assim sinto que produzo minha arte, sei que poderia produzir mais e muito mais e com muito mais qualidade e primor, entretanto, não tenho o amanhã, não tenho o tempo ao meu dispor. Só tenho o agora, no meio da turbulência em que estou e luto para me manter viva, respirando, existindo, ancorada neste estado de conservação, esperando que um dia possa mudar de sólido para líquido e me fazer rio intenso, senhora de minhas águas… por onde for.
A todas as mães e mulheres que lutam entre viver os seus sonhos e amparar os sonhos dos que amam.
